Passam por mim, sinto-lhes os passos...no ar a suas respirações e nem por isso uma palavra. Mas existem, são os outros. São gentes...gentes que cruzam o meu caminho e em mim deixaram o seu rasto.
Partes de mim, silêncios meus e até sombras de uma vida...

Um lugar, várias histórias e uma imensidão de palavras constituem a verdadeira essência das"Gentes" da minha terra.

sábado, 19 de junho de 2010

No fundo do baú...


Há uns dias atrás...

Toca uma, toca duas, toca três…peço que pare, mas continua. Não é possível estar a pedir ao meu telemóvel que simplesmente desligue o despertador…estou ensonada, quero dormir. Ganho balanço e levanto-me, a partir daí parece que tudo funciona como uma dança. Banho, roupa, pequeno-almoço, o último olhar para o espelho e sair…

Não acho normal, está a chover…porque é que ninguém me disse que hoje era dia de calçar as botas? Não vou voltar atrás, deixo-me ir…sinto os pés molhados, o cabelo a encolher e tenho a sensação que o Inverno não passou. Aí está ele, o meu autocarro…entro, fico de pé a ouvir as histórias hilariantes do fim-de-semana de pequenos adolescentes à espera de crescerem. E apesar daquele barulho ensurcedor gosto de ouvir as suas “aventuras”.

Ainda me sinto dormente, encosto a cabeça ao vidro e tento fechar os olhos mas os solavancos do autocarro não me permitem cair no sono. O autocarro pára, saem algumas pessoas e de repente, ao olhar para a paragem, vejo um vulto familiar. Aquela cara, o ar apático, e algumas características faciais que reconheceria em qualquer lugar...encontrei-o no fundo do baú das minhas memorias.

Recuo cerca de 10 anos e ele está lá. Recordo-me da sua alcunha, da forma como era alvo de gozo dos outros miúdos, e pela forma como vivia o seu mundo. Para todos nós ele não era normal, havia quem o achasse "deficiente"…mas na verdade a sua única deficiência era atenção. Deve ter sido por isso que durante algum tempo ele achou que eu era o amor da sua vida. Como é possível uma criança na entrada da adolescência sofrer por amor ao ponto de simular um suicídio? Acho que na altura não dei grande importância, mas o facto é que ele ia atirar-se, no entanto era provável que àquela altura conseguisse "apenas" partir uma perna.

Hoje não conheço o seu rumo, não sei onde pára mas o facto é que marcou de alguma forma parte da minha vida. Durante algum tempo senti a sua perseguição, por vezes incomoda mas sem malícia. Por vezes pensava...mas porque é que apenas os rapazes “assim” se interessam por mim.?Quando somos crianças as nossas inseguranças são tão simples, por vezes até ridiculas... mas naquele momento era o maior dos dramas.

Anos mais tarde percebi que isto não era um defeito, era mesmo feitio. Por mais espontânea e impulsiva que fosse sempre fui atenta, sempre dei importância aos outros (o que nem sempre foi bom), e foi esta atenção que sempre levou até mim pessoas completamente à parte.
O autocarro partiu e fiquei a pensar no seu gesto à 10 anos atrás…de alguma forma fui importante para ele. Por mais insólito que seja, tudo tem o seu significado…

Até Breve!

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